"Fazer um registo de
propriedade é chato e difícil mas fazer uma declaração de amor ainda é
pior. Ninguém sabe como. Não há minuta. Não há sequer um despachante ao
qual o premente assunto se possa entregar. As declarações de amor têm de
ser feitas pelo próprio. A experiência não serve de nada — por muitas
declarações que já se tenham feito, cada uma é completamente diferente
das anteriores. No amor, aliás, a experiência só demonstra uma coisa:
que não tem nada que estar a demonstrar coisíssima nenhuma. É verdade —
começa-se sempre do zero. Cada vez que uma pessoa se apaixona, regressa à
suprema inocência, inépcia e barbárie da puberdade. Sobem-nos as
bainhas das calças nas pernas e quando damos por nós estamos de calções.
A experiência não serve de nada na luta contra o fogo do amor.
Imaginem-se duas pessoas apanhadas no meio de um incêndio, sem poderem
fugir, e veja-se o sentido que faria uma delas virar-se para a outra e
dizer: «Ouve lá, tu que tens experiência de queimaduras do primeiro
grau...»
Pode ter-se sessenta anos. Mas no dia em que o peito sacode com as aurículas a brincar aos carrinhos-de-choque com os ventrículos, Deus Nosso Senhor carrega no grande botão «CLEAR» que mandou pôr na consola consoladora dos nossos corações. Esquece-se tudo. Que garfo usar com o peixe. Que flores comprar. Que palavras dizer. Que gravata com que raio de casaco hei-de usar? Sabe-se nada. Nicles.
Olha-se para as mãos e parece uma cena de transformação dum filme de lobisomens — de onde outrora havia aqueles dedos tão ágeis e pianistas, brotam dez abortos de polegares. E o vinho entorna-se só de pensar nisso. E as solas dos sapatos passam a atrair magneticamente todos os excrementos caninos da cidade. E a voz que era toda FM Estéreo da Comercial quando vai para dizer «Gosto muito de ti» fica repentinamente Abelha Maia.
Tenha-se 17 ou 71 anos, regressa-se automaticamente aos 13 — à terrível idade do Clearasil e das sensações como que de absorção. Quem se apaixona dá mesmo saltos no ar e diz «Uau!» quando o Pai deixa usar a pasta de dentes dele. Qual «ternura dos quarenta», qual bota da tropa cheia de minhocas! O amor é sempre uma anormalidade que provoca graves atrasos mentais. "
Pode ter-se sessenta anos. Mas no dia em que o peito sacode com as aurículas a brincar aos carrinhos-de-choque com os ventrículos, Deus Nosso Senhor carrega no grande botão «CLEAR» que mandou pôr na consola consoladora dos nossos corações. Esquece-se tudo. Que garfo usar com o peixe. Que flores comprar. Que palavras dizer. Que gravata com que raio de casaco hei-de usar? Sabe-se nada. Nicles.
Olha-se para as mãos e parece uma cena de transformação dum filme de lobisomens — de onde outrora havia aqueles dedos tão ágeis e pianistas, brotam dez abortos de polegares. E o vinho entorna-se só de pensar nisso. E as solas dos sapatos passam a atrair magneticamente todos os excrementos caninos da cidade. E a voz que era toda FM Estéreo da Comercial quando vai para dizer «Gosto muito de ti» fica repentinamente Abelha Maia.
Tenha-se 17 ou 71 anos, regressa-se automaticamente aos 13 — à terrível idade do Clearasil e das sensações como que de absorção. Quem se apaixona dá mesmo saltos no ar e diz «Uau!» quando o Pai deixa usar a pasta de dentes dele. Qual «ternura dos quarenta», qual bota da tropa cheia de minhocas! O amor é sempre uma anormalidade que provoca graves atrasos mentais. "
Miguel Esteves Cardoso, in 'Os Meus Problemas'
É tão verdade, é que sem tirar nem pôr. Nesses casos somos todos umas autênticas crianças sem saber para que lado nos virarmos.
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